domingo, 8 de março de 2015

Ode ao Burguês - capítulo 15

Enquanto Alice se divertia no interior confortável de seu veículo (ela havia estacionado na rua de trás da casa de sua mãe, a fim de encontrar-se com o moço da camiseta preta), seus filhos torciam com seus primos para a seleção felizes da vida. O burguês, alheio a tudo (condição intrínseca, proporcionada pela distorção cognitiva que sua classe experimenta), torcia silenciosamente em sua sala despida de ufanismos “cubanizados” da copa. Entre expectativas de gol e de ataques frustrados (Nossa, na trave! Esse moleque é bom mesmo!), alguns lampejos (fracos, transitórios, mais ainda lampejos) reflexivos insistiam em tirar-lhe a atenção do jogo. Durante o intervalo, ao invés de escutar atentamente aos comentários “inteligentíssimos” dos comentadores televisivos sobre o jogo, o burguês decidiu ligar seu ultrabook de última geração e navegar pelos blogs e sites de protesto contra o governo brasileiro (esses comunistas filhos da puta...). Encontrou bastante material, quase todos derivados das matérias de sua revista semanal predileta. Muitos também continham material ofensivo, vulgar mesmo, mas o burguês entendeu que era necessário avacalhar com os “inimigos da pátria” a qualquer custo, mesmo que este “custo” estivesse sendo cobrado a base de xingamentos e piadinhas a respeito da falta de dedos ou da opção sexual de alguém. Sim, ele entraria nessa onda, afinal a elite paulista (da qual ele acreditava mesmo que fazia parte) precisava defender os interesses do país! Digitou, em uma plataforma de buscas eletrônica, os termos que mais o representavam, as palavras que o glorificavam em sua existência: classe média! Como resposta, obteve inúmeros links. Porém, um lhe chamou a atenção. Era um vídeo com este tema gravado em uma palestra de uma doutora em filosofia da USP, Marilena Chauí. Como a referida universidade sempre havia sido o sonho de estudos do burguês, ele resolveu apreciar o material. Conforme a doutora aprofundava suas reflexões, o burguês ficava estranhamente incomodado. Precisou passar mais duas vezes o vídeo para finalmente entender que a tal aberração cognitiva da qual a doutora falava era exatamente o grupo de pessoas do qual ele julgava pertencer, a classe média. Revoltado com a impertinência daquela “professorazinha” de filosofia, resolveu pesquisar sobre sua produção acadêmica, achando que este seria seu ponto fraco. Inseriu seu nome na mesa plataforma de buscas e... “Caracas, aproximadamente 269.000 resultados? Nossa, essa produz mesmo!” (a questão da produção era muito importante para o burguês, pois o mesmo havia sido treinado para isso a sua vida inteira). Desanuviado, resolveu esquecer a doutora, resolveu esquecer essa história de aberração cognitiva. Porém, antes de voltar ao jogo, resolveu protestar eletronicamente. Clicou em um blog cheio de opiniões oriundas do senso comum sobre o atual governo brasileiro e escreveu:
O Brasil é nosso! Tirem as mãos do nosso país! A maioria errou, e nós, democraticamente, não aceitamos esse erro! Queremos a volta da democracia, queremos que a maioria do povo brasileiro não decida o futuro do país!

Protesto escrito, o burguês (com sobrepeso e pressão alta) voltou ao jogo da seleção. Alice continuava a se divertir em um bairro próximo dali. Seus filhos se divertiam com  seus primos e o burguês, a esse sujeito continuava a se divertir com a sua condição de aberração cognitiva que tanto lhe fazia bem...

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