domingo, 8 de março de 2015

Ode ao Burguês - capítulo 14

O burguês decidiu que não entraria no clima da Copa. Queria protestar contra a “roubalheira” que assolava o país! Finalmente ele tinha entendido tudo o que acontecia de podre em solo tupiniquim, pois sua revista semanal predileta estava denunciando todos os erros e tramoias do atual governo. Aliás, ele acreditava piamente nesta revista, bem como acreditava piamente que o vocalista Roger, do Ultraje a Rigor, tinha mesmo um QI de 172. Se ele, gênio da música nacional, tinha entendido todo o processo de transformação de nossa economia como um projeto de “cubanização” compulsória, não seria o burguês que falaria o contrário! Sim, em protesto contra este governo socialista e corrupto e em apoio a artistas tão importantes como o Roger e o Lobão (o burguês acreditava que este era quase um mártir, um perseguido pela classe de artistas esquerdistas e alienados do Brasil), ele decidiu que manteria a sua atenção longe das transmissões esportivas no dia de hoje. Para tanto preparou o ambiente! Acordou mais cedo e fez café para sua linda e fiel esposa. Deixou os jogos de videogame prediletos de seus filhos na mesa de centro da sala, em frente a televisão de última geração, pois assim, talvez, eles esquecessem o álbum de figurinhas que os encantavam a semanas. Fez questão de imprimir (pois escrever a mão é coisa de pobre) um aviso sobre a sua decisão para afixar no parapeito de sua varanda com espaço gourmet (com extrema criatividade, o burguês decidiu juntar ao texto de repúdio à Copa uma foto do seu grande mestre, Olavo de Carvalho). Preparado, partiu para o quarto de seus filhos para acordá-los. Ao abrir a porta percebeu que os dois não estavam em suas camas. Ouvindo as vozes que vinham de seu próprio quarto, entendeu que os “pestinhas” já haviam acordado e estavam com Alice, sua maravilhosa esposa. Foi feliz até lá. Ao abrir a porta surpreendeu-se com os três vestidos de verde e amarelo dos pés às cabeças! Chocadíssimo com a cena, mas tentando manter a calma, o burguês diz:
- Ei, meus amores, nãã nãni nãnão! Hoje não tem Copa, não tem Brasil! Hoje somos os remanescentes de um Brasil decente, baseado na família, na tradição e na propriedade! Nós protestaremos contra toda essa “cubanização” de nossos princípios! Vamos lá! Nada de verde e amarelo!
Alice não disse nada, apenas olhou jocosamente para seu “ilustre” parceiro. Os meninos não deram atenção e saíram correndo. Passaram pelo corredor, pela sala despida de ufanismo, pela porta de entrada que dava acesso ao hall e encaminharam-se para o elevador, rumo a garagem. O burguês, atônito com a reação dos dois, olhou para Alice, que terminava de passar seu batom predileto:
- Amor, meu benzinho, nós havíamos combinado que...
- Senhor Adolfo, sem essa! Nós não combinamos nada! Se você quiser nos acompanhar estamos indo para a casa de mamãe assistir ao jogo com meus irmãos e sobrinhos. Se não quiser... bem, fique aqui e seja feliz. Agora sai da frente da porta que estou atrasada, tá? Beijos...

Alice seguiu o mesmo caminho feito por seus filhos. O burguês, sem nada dizer e sem o que fazer, caminhou até a porta, fechou-a rispidamente e desabou no sofá. Incomodado com a falta de companheirismo de sua família, frustrado por seu aviso ter desgrudado do parapeito e voado pelos ares de seu bairro, o burguês percebeu que, agora sozinho, não precisaria mais levar o seu discurso ao pé da letra. Vencido, ligou a TV e deixou-se levar... o Roger que proteste sozinho...

Nenhum comentário:

Postar um comentário