O burguês decidiu
que não entraria no clima da Copa. Queria protestar contra a “roubalheira” que
assolava o país! Finalmente ele tinha entendido tudo o que acontecia de podre
em solo tupiniquim, pois sua revista semanal predileta estava denunciando todos
os erros e tramoias do atual governo. Aliás, ele acreditava piamente nesta
revista, bem como acreditava piamente que o vocalista Roger, do Ultraje a
Rigor, tinha mesmo um QI de 172. Se ele, gênio da música nacional, tinha entendido
todo o processo de transformação de nossa economia como um projeto de
“cubanização” compulsória, não seria o burguês que falaria o contrário! Sim, em
protesto contra este governo socialista e corrupto e em apoio a artistas tão
importantes como o Roger e o Lobão (o burguês acreditava que este era quase um
mártir, um perseguido pela classe de artistas esquerdistas e alienados do
Brasil), ele decidiu que manteria a sua atenção longe das transmissões
esportivas no dia de hoje. Para tanto preparou o ambiente! Acordou mais cedo e
fez café para sua linda e fiel esposa. Deixou os jogos de videogame prediletos
de seus filhos na mesa de centro da sala, em frente a televisão de última
geração, pois assim, talvez, eles esquecessem o álbum de figurinhas que os encantavam
a semanas. Fez questão de imprimir (pois escrever a mão é coisa de pobre) um
aviso sobre a sua decisão para afixar no parapeito de sua varanda com espaço
gourmet (com extrema criatividade, o burguês decidiu juntar ao texto de repúdio
à Copa uma foto do seu grande mestre, Olavo de Carvalho). Preparado, partiu
para o quarto de seus filhos para acordá-los. Ao abrir a porta percebeu que os
dois não estavam em suas camas. Ouvindo as vozes que vinham de seu próprio
quarto, entendeu que os “pestinhas” já haviam acordado e estavam com Alice, sua
maravilhosa esposa. Foi feliz até lá. Ao abrir a porta surpreendeu-se com os
três vestidos de verde e amarelo dos pés às cabeças! Chocadíssimo com a cena,
mas tentando manter a calma, o burguês diz:
- Ei, meus amores, nãã
nãni nãnão! Hoje não tem Copa, não tem Brasil! Hoje somos os remanescentes de
um Brasil decente, baseado na família, na tradição e na propriedade! Nós
protestaremos contra toda essa “cubanização” de nossos princípios! Vamos lá!
Nada de verde e amarelo!
Alice não disse nada,
apenas olhou jocosamente para seu “ilustre” parceiro. Os meninos não deram
atenção e saíram correndo. Passaram pelo corredor, pela sala despida de
ufanismo, pela porta de entrada que dava acesso ao hall e encaminharam-se para
o elevador, rumo a garagem. O burguês, atônito com a reação dos dois, olhou
para Alice, que terminava de passar seu batom predileto:
- Amor, meu benzinho,
nós havíamos combinado que...
- Senhor Adolfo, sem
essa! Nós não combinamos nada! Se você quiser nos acompanhar estamos indo para
a casa de mamãe assistir ao jogo com meus irmãos e sobrinhos. Se não quiser...
bem, fique aqui e seja feliz. Agora sai da frente da porta que estou atrasada,
tá? Beijos...
Alice seguiu o mesmo
caminho feito por seus filhos. O burguês, sem nada dizer e sem o que fazer,
caminhou até a porta, fechou-a rispidamente e desabou no sofá. Incomodado com a
falta de companheirismo de sua família, frustrado por seu aviso ter desgrudado
do parapeito e voado pelos ares de seu bairro, o burguês percebeu que, agora
sozinho, não precisaria mais levar o seu discurso ao pé da letra. Vencido,
ligou a TV e deixou-se levar... o Roger que proteste sozinho...
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