terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Ode ao burguês - capítulo 8

O burguês estava triste. Não conseguiu trocar o presente que ganhou de seu irmão (a camisa de linho, caríssima, estava apertada) no shopping. Também não conseguia entender o porquê daquela felicidade repentina de sua esposa, Alice. Desde que ela voltou daquela tarde passada na casa de sua mãe, seus olhos brilhavam de um jeito diferente. Pareciam vivos, cheios de chistes, de fogo. "O que será que aconteceu com esta mulher?", pensava enquanto tentava vestir uma calça colorida (bem descolada por sinal) que ganhou de seu smart-sobrinho, apelido carinhoso que ele mesmo inventou (afinal, o menino só tem 13 anos e já garantiu uma bolsa de estudos em Harvard!). A calça não entrou, bem como as suas considerações a respeito de Alice. Afinal, pensou desistindo da peça colorida, será que a minha sogra é mágica????

Ode ao burguês (em memória de Nelson Rodrigues) - capítulo 7

(a sequência da saga dos medíocres): 
“- Marcos Eduardo! Guarde este iphone e me ajude a procurar a sua mãe!” O burguês andava apressado por entre os corredores, a procura de sua esposa de cabelos alisados e coloridos artificialmente (dez anos mais nova, Alice não gostava de seu nome, tão pouco da sua atual situação). Em um dado momento, o burguês avista o sujeito de camisa preta. “Dever ser um maldito estuprador pedófilo, só pode! Olha lá, o sujeito está na livraria, tentando disfarçar na seção de quadrinhos!”. Envolto em seus devaneios adentra a livraria e resolve interpelar o sujeito que, absorto, contempla a coleção completa em capa dura do Cavaleiro das Trevas. Com toda a sua energia, o burguês resolve ser assertivo e direto, afinal este maldito monstro merece ser desmascarado:
- Hã, por favor... você estava na mesa comigo e minha esposa, não?
O sujeito se volta para aquela figura patética e a fita. Percebendo a ansiedade controlada do burguês (face levemente corada, mãos trêmulas e um olhar desviante, meio covarde) não entende a porquê da pergunta:
- Sua esposa, aquela mulher de cabelos vermelhos?
- Sim, minha Alice! Você a viu?
- Ah, Alice... não, não a vi.
O burguês sente seu sangue ferver:
- Mas, mas... quer dizer, você...
- Eu o quê? (O sujeito compreende toda a situação).
 - Você não estava na mesa com ela?
O sujeito, antes de responder, olha bem nos olhos do burguês, que desvia o olhar novamente. - Meu velho, parece que você perdeu o seu trófeu, quer dizer, a sua compra... ops, desculpe, a sua esposa. E o que eu tenho a ver com isso?
- Não, nada, é que...
O burguês, embaraçado, sente raiva e não completa a frase. Neste momento seu filho aparece com a notícia:
- Pai, a mamãe está na loja de sapatos aqui do lado.
O burguês olha para o filho, olha para o sujeito e, totalmente sem ânimo (a vergonha o preenchia) agradece pela ajuda e se retira. Ao entrar na loja ralha com sua esposa que estava experimentando um sapato de salto alto (para as festas de fim de ano). A vendedora fica sem graça. Alice também. Sem comprar os sapatos retira o burguês da loja, pede para seu filho esperar na poltrona do corredor e metralha:
- Olha aqui, você está pensando o quê, heim? Já lhe disse mil vezes que odeio quando você dá os seus pitis sem necessidade!
- Mas, amoreco, eu achei que aquele sujeito...
- O quê! Adolfo Almeida Bastos (quando o nome é proferido por inteiro...), eu não acredito que você ousou desconfiar da sua esposa!
- É que aquele sujeito parecia...
- Parecia nada! Por hoje chega, vou embora!
O burguês, sentindo seu coração acelerar, acena com a cabeça, concordando.
- Então vamos, por hoje chega mesmo.
- Você não me entendeu, senhor Adolfo. Eu vou para casa sozinha! Aliás, para casa não, vou para casa da mamãe ver se essa raiva de você passa! Você leva o Quinho! Mais tarde nos falamos. Que coisa!
O burguês concorda, mesmo não querendo. Tira duas notas de cem reais do bolso e as oferece para o pagamento do táxi. Depois afaga os cabelos espetados de seu filho, chamando-o para irem ao estacionamento. Enquanto os dois desaparecem pelos corredores do shopping (novinho em folha), Alice espera em frente a loja de sapatos. Dez minutos depois ela se vira, anda alguns metros e entra na livraria. No corredor destinado aos quadrinhos o sujeito, que ainda folheava a edição de capa dura, observa a mulher se aproximar:
- Ele já foi?
Alice sorri. (Pequena anedota destinada a Nelson Rodrigues, o maior de todos os burgueses).

Ode ao burguês - capítulo 6

(Continuando...) Quase no final da ingestão do seu temaki, o burguês (mais desconfiado do que nunca) observava o sujeito puxar conversa com seu filho. Ele estava interessado em comprar um vídeo game e, percebendo o enorme interesse da criança no assunto, partiu para a arguição: você conhece o Xbox? É melhor do que o Play4? Sim, não, é... As palavras desfilavam e o burguês, agora notando que sua esposa prestava muita atenção na conversa de ambos sobre games, ficara mais irritado. “O que esse camarada quer?” “Acho que é um sequestrador, não um pedófilo sequestrador, é isso”. Decidido a defender a sua honra e a sua família daquele ser repulsivo (afinal, quem é o louco que almoça sozinho em um shopping?), o burguês abocanha o último pedaço da iguaria e profere solenemente: “Querida, filhão, vamos embora! Temos muitos presentes a embrulhar!” Em seguida se levanta tão rápido que sua bandeja colorida, cuja ponta estava firmemente acomodada nas dobras de sua barriga, de repente salta! O resto de molho de soja que sobrara da refeição voa, percorre uma quase perfeita parábola e aterrissa cinematograficamente na camisa do burguês, espalhando-se e acomodando-se em suas fibras de algodão. Atônito, ele solta um grunhido fino (feito porco na hora do abate) e, imediatamente, corre para o banheiro. Seu filho sorri pelos cantos da boca e volta ao iphone. Sua esposa, com um semblante quase tosco, desculpa-se, toda sem graça, com o sujeito. Este, vestindo uma camiseta preta, quase não sentiu o efeito do molho. Levanta-se, confere os respingos em seu jeans e se dá por satisfeito. “Não se preocupe, não sujou muito.” A esposa sorri rapidamente e pede para seu filho ir atrás do pai no banheiro, ordem que é cumprida muito a contragosto. Diante do espelho o burguês (que nunca se viu realmente) avalia o estrago: “230,00 reais por uma camisa polo e agora, lixo. Não acredito!” Em meio a suas reflexões é despertado pela chegada de seu filho: “Pai, a mamãe quer saber se você está bem?” O burguês olha para o filho, pensa um pouco e responde: “Você deixou sua mãe sozinha lá, com aquele sujeito?”. O filho balança a cabeça, sem retirar o olhar do iphone. “Marcos Eduardo, desligue esse jogo e volte para lá”. O filho obedece. Cinco minutos depois, enquanto o burguês tenta ajeitar os seus cabelos (o gel estava ressecando), Marcos Eduardo retorna: “Pai, a mamãe não está lá.” O burguês, agora com um certo frio na barriga, sai do banheiro, caminha até a mesa de quatro lugares e, já com vertigens, constata: “caramba, cadê minha esposa?” (continua...)

Ode ao burguês - capítulo 5

O burguês, satisfeito com as conquistas de mais um dia de "caça as ofertas" no shopping recém inaugurado (novinho em folha), segura pacientemente sua bandeja colorida, recheada com sushi, enquanto espera uma mesa vagar na praça de alimentação. Seu filho explora seu novo iphone, o que o preocupa (afinal acabara de comprá-lo, mas enfim...) e sua esposa mantém um olhar fixo, meio esperançoso, meio raivoso, em direção a uma mesa de quatro lugares ocupada por apenas um sujeito. Em sua mente desfilam as mais variadas formas de xingamentos, afinal o que aquela pessoas está fazendo ali? Sozinha em uma mesa familiar? Que absurdo! O sujeito percebe o olhar e a situação. Dócil, convida o trio de burgueses para sentarem-se à mesa, afinal, são três lugares vagos. O burguês recebe a proposta com desconfiança (e se for um bandido querendo nos atacar desprevenidos, como nas histórias do Datena?). Sua esposa, antes de aceitar formalmente o convite, deposita as sacolas na cadeira em frente ao sujeito. Depois, refletindo sobre a disposição dos lugares, agradece com um ar sério, retira as sacolas e pede para seu filho sentar-se ali. O menino, sem retirar os olhos do novo iphone obedece. Ela então se senta ao lado do filho enquanto o burguês, muito contrariado, se senta ao lado do sujeito, que volta a degustar calmamente sua batata recheada. A família começa a comer suas iguarias japonesas, de baixa caloria, conforme recomendações de seus respectivos consultores de saúde (continua...)

Ode ao burguês - capítulo 4

O poodle (que imaginava ser o burguês) parou de latir. Desvencilhando-se dos filhos do burguês (que acreditavam serem mesmo filhos dele) correu para perto de seu dono. A esposa de cabelos lisos e coloridos artificialmente (que as vezes se sentia como uma poodle) soltou o ar dos pulmões aliviada. Poderia, agora, assistir ao programa de comédia produzido por burgueses “descolados”. O burguês, na frente da tela de seu ultrabook, sentia sono (condição inata). Com um sorriso forçado (tautologia), afaga os pelos de seu cão, relembrando a textura de seu “ursinho de pelúcia” da infância (sempre coisificando os seres). Ainda sem decidir o formato de seu blog (é mais fácil mandar do que fazer), o burguês navega entre sites de compras. A lembrança de sua infância lhe traz, de repente, uma ideia: - “Isso, vou construir minha árvore genealógica!”. Munido de fotos antigas e dos documentos oficiais da família, descobre que seu tataravô foi o capataz (capitão do mato) de uma fazenda e que seu bisavô foi o chefe de um engenho no interior. Lembrava que seu avô foi o gerente de um banco paulista e que seu pai havia seguido a mesma carreira. Revisitando-os e comparando seus antecessores ao seu momento (ele era o diretor de uma multinacional), obteve uma certeza: - “É, os Souza Bastos nasceram para comandar”. Um minuto depois seu celular vibra. Seu superior o convocava para uma reunião urgente, como todas as reuniões urgentes (fora de seu horário de trabalho) naquele mês. A contragosto, o burguês volta a colocar os sapatos enquanto reflete: “Ah, o preço que se paga pelo sucesso...”  Na sala, sua mulher, ao perceber o início do mesmo ritual de sempre, sente-se ainda mais aliviada: - “Enfim só!

Ode ao burguês - capítulo 3

O burguês em crise (medo dos alienígenas, dos zumbis e do desabastecimento, incluindo de água) começa a construir seu blog. Seus dedos gordos passeiam pelo teclado do ultrabook (última aquisição de seu passeio semanal no shopping). Em pesquisa rápida pelo grande oráculo (chamado pelos outros de Google), se depara com uma "sampa" da década de vinte e com a sua paulicéia desvairada. - "Mário de Andrade? Acho que já ouvi falar deste nome nos meus tempos de colégio..." Resolve, então, ler a poesia que lhe parece (pelo título, sempre pelo título) uma homenagem aos homens de bem como ele. Lê, relê, não entende. - "Ódio vermelho? Ódio fecundo? Puxa, que esquisito..." O burguês, diante da adversidade cognitiva, deixa "sampa 20" e volta ao seu bom e velho site de compras online...

Ode ao Burguês (Mário de Andrade)

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, 
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

Ode ao burguês - capítulo 2

O burguês quase acéfalo (questão evidente) desiste de seu interlúdio com o espelho (pois imagens são melhores em HD). De volta ao caminho do seu banheiro, sentindo o chão forrado pelo laminado que imita madeira (quase perfeito) intenta, em sua zona de desconforto, uma ideia: Uau, vou compartilhar minhas angústias em um blog! (pois contatos virtuais não cheiram e não soltam as tiras). Agora sentado em seu devido trono, produzindo parte de sua essência, apenas uma dúvida o atormenta. Está indeciso, para ilustrar o seu espaço virtual, entre a imagem de jesus estilizada em um grafite e a frase do grande filósofo contemporâneo: "Amo muito tudo isso!"...

Ode ao burguês! (versão contemporânea) capítulo 1

O burguês com sérios problemas cognitivos (uma questão intrínseca), olha para o seu carro financiado, para o seu apartamento financiado, para a sua esposa de cabelos alisados e coloridos artificialmente. Seus olhos giram pela sala, passam pela TV novinha, pela varanda com espaço gourmet e por seus dois filhos de cabelos espetados, que brincam com um pequeno poodle que late sem parar. Sem os seus sapatos apertados, sente os fios de seu espetacular tapete persa. Aos cinquenta anos, com sobrepeso e pressão alta, o burguês (na verdade capitão do mato) não entende mais nada. Lentamente se levanta e caminha na direção de seu banheiro, a fim de produzir algo mais palpável do que seus pensamentos. No caminho encontra um espelho, e tomado por uma esperança juvenil, encara-o e pergunta: espelho, qual é o problema do mundo? O espelho não responde, apenas reflete.