O burguês queria
dizer que detestara aquele lugar, mas Alice (sua esposa) parecia radiante e ele
não ousava contrariá-la. Não entendia o que aquela cidade quase toda feita de
pedra tinha de especial. Pessoas pobres moravam ali. Pessoas pobres, mal
vestidas (as vezes com chapéus de bruxa, outras vezes com camisetas de bandas
de rock) frequentavam aquelas ruas. As cachoeiras eram longe, as estradas de
acesso a elas eram esburacadas e cheias de poeira (rodar naquele fim de mundo
estragaria a suspensão de seu carro financiado) e o comércio local oferecia
apenas missangas e artesanato hippie. “Hotel de qualidade?” - Pensava o burguês
enquanto caminhava em direção ao cruzeiro – “Oras bolas... só pousadas, só
pousadas!” Chegando ao cruzeiro, no alto do morro que abrigava a cidade, seus
olhos quase desmancharam-se... de raiva! “O quê, apenas uma cruz de madeira em
cima de umas pedras???” Indignado com a subida (seus poros pareciam bicas
d’água), o burguês interpela Alice:
- Amoreco, cansei
desta viagem! Que lugar estranho, que gente esquisita! Não tem nada de bom
aqui!
- Adolfinho querido,
relaxe e aproveite! Olhe que vista ma-ra-vi-lho-sa!
- Sim, montanhas e
mais montanhas... Vamos embora hoje mesmo!
- Adolfo! Estamos na
terra do Ventania! Sente-se um pouco e aproveite.
Na verdade Alice nunca
ouvira falar deste cantor, também não entendia o porquê daquele lugar ser tão
comentado por seu amante. Porém como a sua empolgação era gigantesca decidira
conhecer a tal cidade mística. Pelo menos levaria fotos e lembrancinhas que
suas amigas de condomínio não possuíam. Observando o burguês sentado, com sua
barriga saliente esticando a camisa polo colorida (comprada a preço de três,
apenas pela marca ostentada) Alice pensava em embebedá-lo logo ao cair da
noite, para que ele não alimentasse nenhum tipo de expectativas em relação a
ela que não fossem baseadas em sono e sonhos profundos – “Ah, se o Roberto
estivesse aqui...”.
Enquanto o pôr do Sol
avermelhava o horizonte e todos (ou quase todos) os presentes naquele morro
saudavam seu declínio, o burguês tentava enviar uma mensagem por celular ao seu
chefe, afinal três dias longe de suas tarefas era muito tempo. Alice tentava,
disfarçadamente, manter a atenção de um rapagão que tocava um violão perto da
pedra onde ela e o burguês se acomodaram (pois com um pouco de álcool o burguês
dormiria a noite todinha...) e uma terceira figura, acompanhada de um cachorro
diminuto e cheio de tranças feitas em um pet shop qualquer, tentava disfarçar
(sem querer de fato) seu anonimato para que os presentes pudessem percebê-lo,
afinal ele participara a mais de dois anos em um telejornal matinal levando as
“vozes” da periferia para a TV e, por conta desta “enorme façanha”, sentia-se
uma grande personalidade. Sua acompanhante, uma loira cheia de maquiagem que,
como o burguês, detestara aquela cidade, ralhava com o sujeito para voltarem
logo para a pousada em que se hospedaram:
- Buzo, vamos sair
daqui! Estou cansada, quero um chuveiro quente!
- Ok, ok, estamos
indo...
O sujeito que se auto
intitulava de suburbano tentava
gravar a cena do pôr do Sol com seu celular e, ao mesmo tempo, segurar seu
cachorrinho cheio de tranças, não percebera que seus calcanhares estavam a
centímetros do fim da plataforma de pedra na qual o cruzeiro havia sido
erguido. Quando finalmente conseguiu acalmar seu cão, ele o leva aos braços e
pede para sua acompanhante:
- Ei minha deusa, tire
uma foto de nós!
A loira cheia de
maquiagem, sem perceber a profundidade do local, imediatamente tira seu celular
da bolsa revestida com “pintas de oncinha” e o aponta para o sujeito e seu
cachorro:
- Vai um pouquinho para
trás, Buzo! Um passinho só!
- Certo mina, um
passinho prá cá e... ahhhhhhhhhhhhh...
Os latidos do
cachorrinho mal foram ouvidos. Três dias depois seu corpo foi levado para São
Paulo e, ao chegar ao local destinado ao seu velório, algumas crianças (que estavam
ali a contragosto) entoaram um rap extremamente brega à capela, como forma de
homenagem do telejornal que o contratara. Quatro dias depois outra figura (que
usava roupas e um boné quase igual ao seu) estreava em seu lugar. Em dez dias o
tal suburbano não seria mais
lembrado.
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