domingo, 22 de março de 2015

Ode ao burguês - capítulo 18

O burguês acordara com uma estranha sensação. Mesmo com a decisão de dispensar a “impertinente da Maria” logo que estivesse em seu trabalho (preferia evitar o contato direto e ligaria de seu escritório), ele ainda não estava seguro (aliás, segurança era uma ideia que o burguês associava a consumo exacerbado e a equipe de monitoramento via satélite). Levantou-se, barbeou-se e foi para a cozinha. Alice degustava o café da manhã ferozmente, fato que lhe chamou a atenção:
- Nossa amoreco, que fome é essa?
- Oi meu quindinzinho (o burguês não percebia que esse apelido não era assim tão carinhoso), dormiu bem? Eu estou com uma alegria que até meu apetite voltou!
- Mesmo? E o que aconteceu? (Ele começara a desconfiar de algo).
- Nada minha diet coke (outro apelido “carinhoso”), estou empolgada com a nova coleção de sapatos italianos que chegaram no shopping! Aliás, Depois do almoço vou até lá para conferir essa maravilha!
O burguês não respondeu, pois precisava pensar sobre o aumento de “visitas” semanais ao shopping realizadas por Alice. Sentou-se, despejou seu cereal importado na vasilha de porcelana “fina e elegante” que comprara em uma loja “descoladérrima”, como dizia seu colega de trabalho, e iniciou seu desjejum. Tentou não se importar com a presença da Maria, que entrava e saia da cozinha em suas tarefas matinais, fingindo ler seu jornal (um factoide crasso e direitoso onde burgueses alienados mantinham o discurso dominante funcionando).  Alice levantou-se da mesa, desejou-lhe um bom dia de trabalho (“Porque alguém precisa trabalhar nesta casa, não é mesmo?”) e desapareceu pelo apartamento com uma enorme varanda e espaço gourmet. Ao dobrar o factoide impresso o burguês se deparou com uma reportagem sobre os protestos contra o governo federal. Começou a ler os escritos sem perceber (logicamente) que aquelas palavras não eram notícia, mas verborragias de ódio que tentavam incitar os leitores a se posicionarem tal e qual o tabloide. Em alguns minutos decidiu que participaria dos protestos: “É isso aí, fora Dilma! Todos os problemas do Brasil são culpa dela, aquela terrorista!”.
No fim de semana vestiu sua camisa da seleção brasileira (original da Nike, pois coisa de camelô é muito brega) e junto com seus dois filhos, que também usavam a referida camisa, foi para a Paulista ser feliz. Sua esposa não quis ir. Disse-lhe que estava preocupada com sua irmã e que usaria a tarde para visitá-la. Desconfiado, o burguês fingiu concordar. Resolveria esta questão de um modo mais agudo (decidira que contrataria um detetive particular). Foi para a avenida de metrô, afinal era bom estar perto do povo. Lá chegando, encontrou vários dos seus colegas e chefias, parecia mesmo que todos os seus amigos burgueses estavam lá: “Nossa, isso sim é democracia! Só gente de bem, cheirosa e bem vestida”. Quando ele e seus filhos estavam no meio da avenida, um cartaz lhe chamou a atenção. Nele havia os dizeres “A favor do feminicídio”. O burguês concordou, pois sentia raiva só de pensar que sua Alice poderia o trair: “Ah se ela o fizer, mando matá-la!” No quarteirão seguinte outro cartaz avivou seus pensamentos (que depois de 40 minutos de caminhada já pensavam em descanso e comida pronta): “Expulsem Paulo Freire das escolas”. Intrigado, foi até o sujeito que o empunhava e perguntou-lhe:
- Quem foi Paulo Freire?
- Você não sabe? Foi um comunista terrorista que implantou o socialismo na educação brasileira! Por causa desse maldito nossa educação está assim, sem regras, sem moral. Queremos a volta da palmatória e o fim das matérias de filosofia e sociologia, que só fazem nossos filhos pensarem como os cubanos! Morte aos professores dialógicos!

O burguês pensou um pouco e concordou com sujeito. Afinal, esse país estava assim por conta do excesso de liberdade que esses “vermelhos” reivindicam.  Passados dez minutos seu estômago reclamava. Reuniu seus filhos e se dirigiu ao Shopping mais próximo. Lá, poderia sentar e comer um “Mac lanche feliz” enquanto pensava em como essa manifestação estava “mudando” o país. Xingou um pouco mais a figura da presidenta, entrou no Shopping e sentiu-se verdadeiramente em casa: “Ah, como é bom lutar por nossos valores, por nosso país”.

domingo, 8 de março de 2015

Ode ao Burguês - capítulo 17

Ainda inconformado com a maioria “antidemocrática” brasileira (Ele sempre dizia sobre o resultado justo das últimas eleições presidenciais: “Esses pobres, não sabem votar! Só haverá democracia plena quando todos pensarem igual a mim!”) a aberração cognitiva, também chamada de burguês, mantinha-se quieto em sua confortável e gigantesca cama (de molas ensacadas, forrada com lençóis de seda legítima). Alice dormia profundamente. Seus filhos também. O apartamento só não estava completamente silencioso devido aos gemidos de sua vizinha de andar, a loira de corpão saradíssimo que ele “secretamente” desejava. Os sons que ela fazia entravam pelas frestas de sua janela e se instalavam em seu desejo. “Nossa, essa mulher é uma máquina! Não cansa nunca! (em suas representações tudo se transformava em coisas...)”. Quase excitado (havia muito tempo que sua ereção não era completa), o burguês levantou com cuidado para não acordar sua esposa e rumou até seu escritório. Ligou o seu computador (de última geração) e resolveu passear por sites de fotos e vídeos pornôs. Claro, preferia as mulheres loiras, magras e com silicone nos seios, como as americanas que ele tanto admirava. Absorto em seus devaneios eróticos o burguês esqueceu de conferir se a porta estava devidamente fechada. Com seu sexo na mão, suas ceroulas arriadas e o som constante do vídeo escolhido (Oh yes, oh Good!) não escutou os passos que vinham em sua direção. Maria, a empregada da família que dormia três dias por semana no minúsculo quarto destinado aos serviçais do apartamento (com varanda estendida e espaço gourmet integrado), abriu a porta do escritório de uma vez, pois precisava falar com sua filha pelo Facebook:
- Opa, desculpe seu Adolfo!!!
O burguês, levantando a ceroula enquanto tentava proteger sua imagem dos olhos da invasora, pulou para trás da escrivaninha de cor viva (ideia do decorador contratado por Alice) grunhindo:
- Feche esta maldita porta! Cacete!
Maria saiu rápido, fechando a porta. Em sua cabeça aquele episódio esquisito estava encerrado, pois “cada qual com seu cada qual...”. Voltou para seu quarto, enfiou-se nos lençóis de sua estreita cama e tentou dormir. O burguês, no outro lado do apartamento, não sabia o que fazer. Recomposto, desligou o seu computador e foi até a cozinha. Tomou um pouco de água, respirou fundo para se acalmar e resolveu ir até o quarto da empregada, para acertar as coisas. Sem ao menos bater na porta (afinal, pensava ele, “Eu sou o dono desta casa!”) abriu-a e sentou-se no pé da pequeníssima cama onde Maria dormia:
- Maria, você está acordada?
Maria estendeu os braços lentamente, olhou para o dono do apartamento, sentou-se e, percebendo que aquele sujeito iria lhe “encher o saco” disse, enquanto se arrumava na parte superior da cama:
- Seu Adolfo, é o seguinte: eu não vi nada, não sei de nada e tenho raiva de quem sabe, belê? Vou dormir que eu ganho mais.
Enquanto ela falava, seus seios ficaram bastante salientes por entre a camiseta de algodão branca que vestia. O burguês, não conseguindo disfarçar seu olhar, e já mudando seu estado de “espírito” em relação à sua interlocutora, posou sua mão esquerda em cima do joelho direito da moça:
- Claro Maria, eu agradeço sua discrição. E por falar nisso... Nossa, como você está atraente hoje!
Maria balançou levemente a cabeça. Já passara por algumas situações parecidas nas casas de família em que trabalhara. Sempre assim, barrigudos casados, ou seus filhos adolescentes, se metiam a conquistadores, achando que ela, por ser doméstica, receberia qualquer tipo de ordem, qualquer tipo de proposta. Retirando asperamente a mão de seu joelho e olhando fixamente para o burguês, Maria resolveu se defender:
- Então, seu Adolfo, vou bater um papo reto com você! Se você tocar em mim de novo eu corto seus bagos e os mando pelos correios para seus familiares lembrarem de você, entendeu? E se você não sair daqui agora, eu juro que quebro o seu nariz, seu porco!

Os olhos dela soltavam faíscas e seus gestos eram verdadeiramente ameaçadores. Sentindo medo o burguês levantou-se rapidamente, saindo do quarto mudo. Atravessou a cozinha, a copa e voltou para seu escritório. Atônito, resolveu sentar-se e acalmar-se. Amanhã daria um jeito nesta “empregadinha impertinente”. “Onde já se viu, falar assim com seu patrão? Ah, esses pobres... cada dia menos gente, menos civilizados...” Trinta minutos depois resolveu deitar-se. Em mais vinte estaria dormindo. Enquanto isso seus pensamentos voltavam-se para a sua vizinha loira de corpão saradíssimo... “Ah se ela me desse bola...”. Maria, ainda indignada, resolveu trancar a porta de seu quarto. Deitando-se novamente seus pensamentos fervilhavam: “Maldito barrigudo do cacete! Tem motivos de sobra para ser esse corno dos infernos que é! Ah, se ele vier com este papinho de novo...”. Adormeceu de punhos cerrados, como a maioria dos que adormecem sobre o jugo de alguma injustiça. 

Ode ao Burguês - capítulo 16

Logo depois de terminada a partida (foram surpreendentes 7X1) o burguês não sabia se sorria ou se chorava. Tinha na mente deformada pelos meios de comunicação brasileiros a certeza de que a vitória da seleção nesta Copa seria revertida em uma nova vitória eleitoral da atual presidenta: “Ahá, agora essa corja de socialistas vai ver uma coisa, a vai!”. Sua imbecilidade incrementada por um modelo mental baseado na heteronormatividade e na mediocridade cognitiva supunha que havia uma crise em curso no país. Além, supunha (pois havia se informado a partir dos comentários dos analistas da VEJA e da Rede Globo) que o país só não crescera mais nos últimos anos devido a má administração e a corrupção que assolava o governo e as suas ações. Esquecia completamente, portanto, dos quinhentos anos de história que haviam forjado as condições para que este modelo de nação, vivido atualmente, operasse. Esquecia deliberadamente, por exemplo, de todas as vezes que sonegou imposto e também de todas as vezes que ajudou as empresas nas quais trabalhou a sonegar, gerando falsas informações e/ou omitindo-as. Esquecia de como ele e o seu modo de vida estavam intimamente ligados as causas e aos efeitos da injustiça social. Mas, mesmo assim, queria sorrir. Queria sentir-se vingado por suas opções políticas não terem sido vitoriosas nas últimas eleições. Queria sentir-se vingado pelo incômodo que “aqueles pobres”, que entulhavam as filas nos voos domésticos do aeroporto que costumava utilizar, haviam proporcionado a ele e a sua família: “Imagine só, roubaram nosso espaço!”. Assim, meio sorridente, meio frustrado, o burguês resolveu passar a tarde compartilhando posts e mensagens que ridicularizavam a seleção e vinculavam seu fracasso nesta Copa ao governo brasileiro. Enquanto isso a vida continuava. Seus filhos jogavam videogame (na TV gigante de última geração). Alice, sua esposa, combinava o próximo encontro com Roberto e seu poodle continuava a achar que era gente. E no meio desta rotina, seu cérebro, cada vez mais adiposo, perdia suas funções intelectuais, ao som da última paródia do Hino Nacional...

Ode ao Burguês - capítulo 15

Enquanto Alice se divertia no interior confortável de seu veículo (ela havia estacionado na rua de trás da casa de sua mãe, a fim de encontrar-se com o moço da camiseta preta), seus filhos torciam com seus primos para a seleção felizes da vida. O burguês, alheio a tudo (condição intrínseca, proporcionada pela distorção cognitiva que sua classe experimenta), torcia silenciosamente em sua sala despida de ufanismos “cubanizados” da copa. Entre expectativas de gol e de ataques frustrados (Nossa, na trave! Esse moleque é bom mesmo!), alguns lampejos (fracos, transitórios, mais ainda lampejos) reflexivos insistiam em tirar-lhe a atenção do jogo. Durante o intervalo, ao invés de escutar atentamente aos comentários “inteligentíssimos” dos comentadores televisivos sobre o jogo, o burguês decidiu ligar seu ultrabook de última geração e navegar pelos blogs e sites de protesto contra o governo brasileiro (esses comunistas filhos da puta...). Encontrou bastante material, quase todos derivados das matérias de sua revista semanal predileta. Muitos também continham material ofensivo, vulgar mesmo, mas o burguês entendeu que era necessário avacalhar com os “inimigos da pátria” a qualquer custo, mesmo que este “custo” estivesse sendo cobrado a base de xingamentos e piadinhas a respeito da falta de dedos ou da opção sexual de alguém. Sim, ele entraria nessa onda, afinal a elite paulista (da qual ele acreditava mesmo que fazia parte) precisava defender os interesses do país! Digitou, em uma plataforma de buscas eletrônica, os termos que mais o representavam, as palavras que o glorificavam em sua existência: classe média! Como resposta, obteve inúmeros links. Porém, um lhe chamou a atenção. Era um vídeo com este tema gravado em uma palestra de uma doutora em filosofia da USP, Marilena Chauí. Como a referida universidade sempre havia sido o sonho de estudos do burguês, ele resolveu apreciar o material. Conforme a doutora aprofundava suas reflexões, o burguês ficava estranhamente incomodado. Precisou passar mais duas vezes o vídeo para finalmente entender que a tal aberração cognitiva da qual a doutora falava era exatamente o grupo de pessoas do qual ele julgava pertencer, a classe média. Revoltado com a impertinência daquela “professorazinha” de filosofia, resolveu pesquisar sobre sua produção acadêmica, achando que este seria seu ponto fraco. Inseriu seu nome na mesa plataforma de buscas e... “Caracas, aproximadamente 269.000 resultados? Nossa, essa produz mesmo!” (a questão da produção era muito importante para o burguês, pois o mesmo havia sido treinado para isso a sua vida inteira). Desanuviado, resolveu esquecer a doutora, resolveu esquecer essa história de aberração cognitiva. Porém, antes de voltar ao jogo, resolveu protestar eletronicamente. Clicou em um blog cheio de opiniões oriundas do senso comum sobre o atual governo brasileiro e escreveu:
O Brasil é nosso! Tirem as mãos do nosso país! A maioria errou, e nós, democraticamente, não aceitamos esse erro! Queremos a volta da democracia, queremos que a maioria do povo brasileiro não decida o futuro do país!

Protesto escrito, o burguês (com sobrepeso e pressão alta) voltou ao jogo da seleção. Alice continuava a se divertir em um bairro próximo dali. Seus filhos se divertiam com  seus primos e o burguês, a esse sujeito continuava a se divertir com a sua condição de aberração cognitiva que tanto lhe fazia bem...

Ode ao Burguês - capítulo 14

O burguês decidiu que não entraria no clima da Copa. Queria protestar contra a “roubalheira” que assolava o país! Finalmente ele tinha entendido tudo o que acontecia de podre em solo tupiniquim, pois sua revista semanal predileta estava denunciando todos os erros e tramoias do atual governo. Aliás, ele acreditava piamente nesta revista, bem como acreditava piamente que o vocalista Roger, do Ultraje a Rigor, tinha mesmo um QI de 172. Se ele, gênio da música nacional, tinha entendido todo o processo de transformação de nossa economia como um projeto de “cubanização” compulsória, não seria o burguês que falaria o contrário! Sim, em protesto contra este governo socialista e corrupto e em apoio a artistas tão importantes como o Roger e o Lobão (o burguês acreditava que este era quase um mártir, um perseguido pela classe de artistas esquerdistas e alienados do Brasil), ele decidiu que manteria a sua atenção longe das transmissões esportivas no dia de hoje. Para tanto preparou o ambiente! Acordou mais cedo e fez café para sua linda e fiel esposa. Deixou os jogos de videogame prediletos de seus filhos na mesa de centro da sala, em frente a televisão de última geração, pois assim, talvez, eles esquecessem o álbum de figurinhas que os encantavam a semanas. Fez questão de imprimir (pois escrever a mão é coisa de pobre) um aviso sobre a sua decisão para afixar no parapeito de sua varanda com espaço gourmet (com extrema criatividade, o burguês decidiu juntar ao texto de repúdio à Copa uma foto do seu grande mestre, Olavo de Carvalho). Preparado, partiu para o quarto de seus filhos para acordá-los. Ao abrir a porta percebeu que os dois não estavam em suas camas. Ouvindo as vozes que vinham de seu próprio quarto, entendeu que os “pestinhas” já haviam acordado e estavam com Alice, sua maravilhosa esposa. Foi feliz até lá. Ao abrir a porta surpreendeu-se com os três vestidos de verde e amarelo dos pés às cabeças! Chocadíssimo com a cena, mas tentando manter a calma, o burguês diz:
- Ei, meus amores, nãã nãni nãnão! Hoje não tem Copa, não tem Brasil! Hoje somos os remanescentes de um Brasil decente, baseado na família, na tradição e na propriedade! Nós protestaremos contra toda essa “cubanização” de nossos princípios! Vamos lá! Nada de verde e amarelo!
Alice não disse nada, apenas olhou jocosamente para seu “ilustre” parceiro. Os meninos não deram atenção e saíram correndo. Passaram pelo corredor, pela sala despida de ufanismo, pela porta de entrada que dava acesso ao hall e encaminharam-se para o elevador, rumo a garagem. O burguês, atônito com a reação dos dois, olhou para Alice, que terminava de passar seu batom predileto:
- Amor, meu benzinho, nós havíamos combinado que...
- Senhor Adolfo, sem essa! Nós não combinamos nada! Se você quiser nos acompanhar estamos indo para a casa de mamãe assistir ao jogo com meus irmãos e sobrinhos. Se não quiser... bem, fique aqui e seja feliz. Agora sai da frente da porta que estou atrasada, tá? Beijos...

Alice seguiu o mesmo caminho feito por seus filhos. O burguês, sem nada dizer e sem o que fazer, caminhou até a porta, fechou-a rispidamente e desabou no sofá. Incomodado com a falta de companheirismo de sua família, frustrado por seu aviso ter desgrudado do parapeito e voado pelos ares de seu bairro, o burguês percebeu que, agora sozinho, não precisaria mais levar o seu discurso ao pé da letra. Vencido, ligou a TV e deixou-se levar... o Roger que proteste sozinho...

Ode ao Burguês - capítulo 13

O burguês queria dizer que detestara aquele lugar, mas Alice (sua esposa) parecia radiante e ele não ousava contrariá-la. Não entendia o que aquela cidade quase toda feita de pedra tinha de especial. Pessoas pobres moravam ali. Pessoas pobres, mal vestidas (as vezes com chapéus de bruxa, outras vezes com camisetas de bandas de rock) frequentavam aquelas ruas. As cachoeiras eram longe, as estradas de acesso a elas eram esburacadas e cheias de poeira (rodar naquele fim de mundo estragaria a suspensão de seu carro financiado) e o comércio local oferecia apenas missangas e artesanato hippie. “Hotel de qualidade?” - Pensava o burguês enquanto caminhava em direção ao cruzeiro – “Oras bolas... só pousadas, só pousadas!” Chegando ao cruzeiro, no alto do morro que abrigava a cidade, seus olhos quase desmancharam-se... de raiva! “O quê, apenas uma cruz de madeira em cima de umas pedras???” Indignado com a subida (seus poros pareciam bicas d’água), o burguês interpela Alice:
- Amoreco, cansei desta viagem! Que lugar estranho, que gente esquisita! Não tem nada de bom aqui!
- Adolfinho querido, relaxe e aproveite! Olhe que vista ma-ra-vi-lho-sa!
- Sim, montanhas e mais montanhas... Vamos embora hoje mesmo!
- Adolfo! Estamos na terra do Ventania! Sente-se um pouco e aproveite.
Na verdade Alice nunca ouvira falar deste cantor, também não entendia o porquê daquele lugar ser tão comentado por seu amante. Porém como a sua empolgação era gigantesca decidira conhecer a tal cidade mística. Pelo menos levaria fotos e lembrancinhas que suas amigas de condomínio não possuíam. Observando o burguês sentado, com sua barriga saliente esticando a camisa polo colorida (comprada a preço de três, apenas pela marca ostentada) Alice pensava em embebedá-lo logo ao cair da noite, para que ele não alimentasse nenhum tipo de expectativas em relação a ela que não fossem baseadas em sono e sonhos profundos – “Ah, se o Roberto estivesse aqui...”.
Enquanto o pôr do Sol avermelhava o horizonte e todos (ou quase todos) os presentes naquele morro saudavam seu declínio, o burguês tentava enviar uma mensagem por celular ao seu chefe, afinal três dias longe de suas tarefas era muito tempo. Alice tentava, disfarçadamente, manter a atenção de um rapagão que tocava um violão perto da pedra onde ela e o burguês se acomodaram (pois com um pouco de álcool o burguês dormiria a noite todinha...) e uma terceira figura, acompanhada de um cachorro diminuto e cheio de tranças feitas em um pet shop qualquer, tentava disfarçar (sem querer de fato) seu anonimato para que os presentes pudessem percebê-lo, afinal ele participara a mais de dois anos em um telejornal matinal levando as “vozes” da periferia para a TV e, por conta desta “enorme façanha”, sentia-se uma grande personalidade. Sua acompanhante, uma loira cheia de maquiagem que, como o burguês, detestara aquela cidade, ralhava com o sujeito para voltarem logo para a pousada em que se hospedaram:
- Buzo, vamos sair daqui! Estou cansada, quero um chuveiro quente!
- Ok, ok, estamos indo...
O sujeito que se auto intitulava de suburbano tentava gravar a cena do pôr do Sol com seu celular e, ao mesmo tempo, segurar seu cachorrinho cheio de tranças, não percebera que seus calcanhares estavam a centímetros do fim da plataforma de pedra na qual o cruzeiro havia sido erguido. Quando finalmente conseguiu acalmar seu cão, ele o leva aos braços e pede para sua acompanhante:
- Ei minha deusa, tire uma foto de nós!
A loira cheia de maquiagem, sem perceber a profundidade do local, imediatamente tira seu celular da bolsa revestida com “pintas de oncinha” e o aponta para o sujeito e seu cachorro:
- Vai um pouquinho para trás, Buzo! Um passinho só!
- Certo mina, um passinho prá cá e... ahhhhhhhhhhhhh...

Os latidos do cachorrinho mal foram ouvidos. Três dias depois seu corpo foi levado para São Paulo e, ao chegar ao local destinado ao seu velório, algumas crianças (que estavam ali a contragosto) entoaram um rap extremamente brega à capela, como forma de homenagem do telejornal que o contratara. Quatro dias depois outra figura (que usava roupas e um boné quase igual ao seu) estreava em seu lugar. Em dez dias o tal suburbano não seria mais lembrado.

Ode ao Burguês - capítulo 12

Adormecido em seu sofá (ainda com os pés em seu tapete estupendamente persa), o burguês não notou quando Alice entrou no apartamento, seguido de seu filho caçula. Enquanto ela preparava o jantar da família (ainda pensando no sujeito de camiseta preta), seus filhos resolveram ligar o vídeo game de última geração que estava conectado a TV da sala. O jogo era baseado em um cenário de guerra e o som dos tiros de metralhadoras, fuzis, revólveres e bazucas (aliás, como dizia o grande Arnold, quanto mais pesado o armamento melhor!) começou a interferir nos sonhos do burguês. A praia quase deserta onde ele se encontrara com sua vizinha loura (e muito malhada) se desfez. Em segundos o burguês vivia, em seus devaneios, outra situação: andando sozinho pelas ruas de um subúrbio aterrorizante (afinal, periferia é lugar de bandido, pensava o burguês e quase todos os burgueses que ocupavam os apartamentos de seu condomínio) envolto pela penumbra da noite e pelo medo de ser assaltado, ele tentava chegar a um lugar seguro, sem sucesso. Todas as esquinas que dobrava o recolocavam na mesma rua, escura, cheia de becos, de onde, ao longe, ouvia muitos tiros sendo disparados. Seu coração acelerou, sua respiração ficou pesada e, momentos antes de acordar de seu pesadelo, o burguês teve tempo de encontrar, nesta rua anti-idílica, com três marmanjos mal encarados, cheios de más intenções (pois periféricos são por natureza perigosos, acreditava ele). Ao tentar correr percebeu que seus pés estavam grudados no chão, presos ao asfalto. Enquanto as três figuras vinham ao seu encontro, o burguês gritava desesperadamente: Socorro, socorro! Chamem a ROTA, chamem a ROTA!!!! O primeiro meliante que o alcançou tinha, por incrível que pareça, exatamente o rosto do raper Mano Brown, e, momentos antes de descarregar sua arma no peito do burguês, olhou bem para os seus olhos e disse: Aqui estou mais um dia, sobre o olhar sanguinário do vigia... E de repente: Bam, bam, bam!!!! Os filhos do burguês se assustaram com o grito do pai. Alice correu para ver o que ocorrera. Ele, sentado no sofá, atônito e sem fôlego, tentava falar o que tinha acontecido: Eu, eu, levei vários tiros em um sonho! Argh, que sensação horrorosa! Sem dizer nada, Alice, balançando negativamente a sua cabeça, voltou para a cozinha. Seus filhos, depois de ouvirem na íntegra o conteúdo do pesadelo que seu pai vivera, voltaram a jogar vídeo game e o burguês... bom, o burguês correu para o seu quarto na tentativa de se acalmar embaixo de uma boa chuverada. Ensaboando-se e tentando relaxar, ainda sentia suas pernas trêmulas. Enchendo os pulmões de ar, sentou no chão do box (como fazia quando era criança) e abraçou suas pernas, enquanto pensava: “Nossa, até quando seremos refém da violência? Será que nós, pais de família e cidadãos de bem não merecemos um mundo seguro, livre desta laia de bandidos, homicidas e estupradores? É, o Alberto (um colega de trabalho) tem razão. Nas próximas eleições votarei no Bolsonaro”. Trinta minutos depois o burguês estava calmo. Suas pernas não tremiam mais e seus dedos ágeis o ajudavam a pesquisar as promoções no site de compras que ele adorava.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Ode ao Burguês - capítulo 11

Alice, sentada no banco de seu carro (off road - presente de aniversário do burguês), pensava no sujeito de camisa preta enquanto dirigia de volta para casa (na verdade um apartamento grande, com ampla varanda e espaço gourmet). Seu filho mais novo, no banco traseiro, pensava no tênis importado da vitrine, enquanto jogava online em seu celular. O filho mais velho do burguês, em seu quarto, pensava em como entrar para o time de beisebol da sua escola (tradicionalmente cara, bilíngue e extremamente americanófila, apesar de ser brasileira), enquanto assistia aos melhores momentos de um programa televisivo feito por burgueses descolados para burgueses não descolados tentarem rir. A vizinha do burguês, enquanto caminhava em sua esteira, pensava em como convidar seu personal trainer (um rapagão forte, meio pobrinho, mas divertido) para sair sem despertar suspeitas. O burguês, enquanto sonhava com sua vizinha melancolicamente, entrelaçava os dedos dos pés nos fios de seu maravilhoso tapete persa e, quase relaxado, parecia adormecer. O poodle, que pensava ser o burguês, castrado e infestado de perfume floral (recomendado cientificamente), queria latir, queria correr, caçar em matilha, brigar com outros cães, viver em algum bosque cheio de vida... mas, no fim, deixava a visão do pote de ração premium (mas ainda artificial) cheio até a boca, amortecer a sua natureza.

Ode ao Burguês -capítulo 10

O burguês aguardava Alice voltar da sorveteria "viajando" pelos sites de compra da internet. Ao procurar na seção de CD´s e DVD´s antigos (seu smart-sobrinho o alertara de como consumir clássicos está na moda), emergiu uma figura com um nome que ele lembrava vagamente: Seleção das 20 mais de Geraldo Vandré. Estranhando um pouco a foto de um rosto dentro de uma gota de orvalho, o burguês enfim lembrou-se do cantor: "Ah, é aquele comunista safado, que foi torturado pelas forças armadas. Nossa, ainda bem que eles nos salvaram desta gente!" Olhando para a lista das músicas selecionadas do CD, deparou-se com um nome curioso: Aroeira". Dedilhando rapidamente seu ultrabook de penúltima geração (esses danadinhos sempre tem um lançamento na semana seguinte...) encontrou em um site de música a letra da canção:

Vim de longe, vou mais longe
Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta
Pra junto a gente cobrar
No dia que já vem vindo
Que esse mundo vai virar
Noite e dia vêm de longe
Branco e preto a trabalhar
E o dono senhor de tudo
Sentado, mandando dar.
E a gente fazendo conta
Pro dia que vai chegar
Marinheiro, marinheiro
Quero ver você no mar
Eu também sou marinheiro
Eu também sei governar.
Madeira de dar em doido
Vai descer até quebrar
É a volta do cipó de aroeira
No lombo de quem mandou dar.

"Hãããã..., o que é isso? Cipó, aroeira, escrevendo conta... aff... deve ser mais um filho da puta que escreve coisas sem sentido e se acha artista... É por essas e outras que prefiro Tom Jobim... Ah, a praia de Ipanema..." Entendendo, mas não querendo entender a letra da canção, o burguês resolveu comprar a obra completa do maestro Tom Jobim. Desta forma poderia levar alguma informação de requinte para as conversas de final de expediente com seus chefes e além de tudo, gabar-se de sua erudição com seus comandados. Enquanto concluía a compra, seus pensamentos, embalados pela milésima escuta da tal Garota de Ipanema (mais burguês do que isso, só o hino americano...) compunham imagens espetaculares: Sua vizinha, que vestia um pequeníssimo biquíni (uma falsa loira bem malhada), corria em sua direção (em uma praia qualquer de Angra dos Reis), clamando por seus lábios... "vem, vem, vem!!!!"
O barulho da porta da sala se abrindo o fez voltar para a realidade:
- É você benzinho?
- Não pai, não é a mamãe... sou eu.
A imagem de seu primogênito entrando cabisbaixo (prestava atenção em seu celular) interrompeu, mas não cessou seus devaneios: "Ah, se ela me desse bola..."
No apartamento do lado a vizinha assistia TV (3D, por sinal) em cima de uma esteira ergométrica. Seu namorado pergunta sobre o senhor boa praça que puxara papo com ele no elevador sobre o tempo (o burguês tentava ser socialmente correto):
- Ah, o nosso vizinho de andar?
- É ele mesmo. Parece ser gente boa.
- Gente boa, um perfeito babaca! Não tira os olhos dos meus peitos.
- Sério? E nunca deu umas entradinhas não... rsrs...
- Nunca, só olha e tenta disfarçar...
- Que otário!

- Como eu disse, um perfeito idiota!

Ode ao Burguês - capítulo 9

Enquanto o burguês praguejava no quarto (a calça colorida não entrara, por conta do excesso de peso decorrente dos anos que passara sentado em seu gabinete), Alice relembrava, esparramada no sofá da sala (com varanda alargada pelo espaço gourmet - oferta top do empreendimento) o quanto a tarde passada "na casa de mamãe" tinha rendido ótimos frutos: "Ah, se eu pego aquele impertinente de novo... deixo-o pelo avesso..." Sua pele estava ótima, seu humor também. Seu filho mais novo, também de cabelos espetados, solta o controle do novo e caríssimo vídeo game (de última geração) e, sem mais nem menos, pergunta para Alice:
- Mamãe, eu tenho que ser filho do papai mesmo?
- Por que esta pergunta agora, filhote? Alice realmente espantara-se.
- Porque sim! Posso ser filho de outro pai?
Um friozinho rápido percorreu a espinha de Alice. Por um instante ela acreditou que seu filho havia entendido tudo. Respirando pausadamente, ao mesmo tempo que recompunha de modo "mais adequado" o seu sentar, responde:
- Poderia filhote, mas não dá. Este é o seu pai.
- Mas, mãe, e se eu fui adotado?
Um pouco desconfortável, Alice ajeita os cabelos. "Ainda bem que ele não entende de DNA, senão...":
- Filhão, vamos deixar de bobeira e descer até a sorveteria?
- Oba!!!!
Os dois saem de mãos dadas porta afora. Alice aliviada com o término da arguição, Renatinho feliz pela doce perspectiva que o aguardava. Ao entrarem no carro, Renatinho, ao acomodar-se no banco traseiro, descobre um papel colorido, meio amassado, que pulara da bolsa de Alice quando ela a jogara automaticamente. Segurando a folha em suas mãos, a leitura dos caracteres impressos revela uma dúvida:
- Mamãe, o que é pesquisa de qualidade?
- Filhote, que pergunta! É quando falamos para alguém, ou um lugar, se gostamos ou não de lá.
- Ah, tá bem. E o que é... o que é... mo... Motel Las Lenhas?
Percebendo de onde Renatinho tirava suas informações, Alice imediatamente se vira para o banco dos passageiros. De um golpe só arranca o papel das mãos de seu filho e, meio eufórica, meio nervosa, responde:
- Nada não menino, coisas de adultos.
Rapidamente enfia o papel no bolso de sua calça jeans (caríssima, por sinal) e desvia novamente o interrogatório:
- Quem quer sorvete!!!
Dez minutos depois, o burguês, não avistando sua esposa (Alice esquecera de avisar) decide ligar para seu celular:
- Alice? Alô, está me ouvindo?
- Claro como água, fofinho!
- Onde você está?
- Na sorveteria com o Renatinho.
-Ah bom... volta rápido? Estou com fome...
- Volto mais não, viu!
- Ah, volta minha rainha...
- Tá bom, tá bom... beijinhos...

Alice guarda o celular no mesmo bolso que enfiara o papel colorido. Seu sorvete acabara e, neste exato momento, um gosto meio amargo agarrara sua garganta...

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Ode ao burguês - capítulo 8

O burguês estava triste. Não conseguiu trocar o presente que ganhou de seu irmão (a camisa de linho, caríssima, estava apertada) no shopping. Também não conseguia entender o porquê daquela felicidade repentina de sua esposa, Alice. Desde que ela voltou daquela tarde passada na casa de sua mãe, seus olhos brilhavam de um jeito diferente. Pareciam vivos, cheios de chistes, de fogo. "O que será que aconteceu com esta mulher?", pensava enquanto tentava vestir uma calça colorida (bem descolada por sinal) que ganhou de seu smart-sobrinho, apelido carinhoso que ele mesmo inventou (afinal, o menino só tem 13 anos e já garantiu uma bolsa de estudos em Harvard!). A calça não entrou, bem como as suas considerações a respeito de Alice. Afinal, pensou desistindo da peça colorida, será que a minha sogra é mágica????

Ode ao burguês (em memória de Nelson Rodrigues) - capítulo 7

(a sequência da saga dos medíocres): 
“- Marcos Eduardo! Guarde este iphone e me ajude a procurar a sua mãe!” O burguês andava apressado por entre os corredores, a procura de sua esposa de cabelos alisados e coloridos artificialmente (dez anos mais nova, Alice não gostava de seu nome, tão pouco da sua atual situação). Em um dado momento, o burguês avista o sujeito de camisa preta. “Dever ser um maldito estuprador pedófilo, só pode! Olha lá, o sujeito está na livraria, tentando disfarçar na seção de quadrinhos!”. Envolto em seus devaneios adentra a livraria e resolve interpelar o sujeito que, absorto, contempla a coleção completa em capa dura do Cavaleiro das Trevas. Com toda a sua energia, o burguês resolve ser assertivo e direto, afinal este maldito monstro merece ser desmascarado:
- Hã, por favor... você estava na mesa comigo e minha esposa, não?
O sujeito se volta para aquela figura patética e a fita. Percebendo a ansiedade controlada do burguês (face levemente corada, mãos trêmulas e um olhar desviante, meio covarde) não entende a porquê da pergunta:
- Sua esposa, aquela mulher de cabelos vermelhos?
- Sim, minha Alice! Você a viu?
- Ah, Alice... não, não a vi.
O burguês sente seu sangue ferver:
- Mas, mas... quer dizer, você...
- Eu o quê? (O sujeito compreende toda a situação).
 - Você não estava na mesa com ela?
O sujeito, antes de responder, olha bem nos olhos do burguês, que desvia o olhar novamente. - Meu velho, parece que você perdeu o seu trófeu, quer dizer, a sua compra... ops, desculpe, a sua esposa. E o que eu tenho a ver com isso?
- Não, nada, é que...
O burguês, embaraçado, sente raiva e não completa a frase. Neste momento seu filho aparece com a notícia:
- Pai, a mamãe está na loja de sapatos aqui do lado.
O burguês olha para o filho, olha para o sujeito e, totalmente sem ânimo (a vergonha o preenchia) agradece pela ajuda e se retira. Ao entrar na loja ralha com sua esposa que estava experimentando um sapato de salto alto (para as festas de fim de ano). A vendedora fica sem graça. Alice também. Sem comprar os sapatos retira o burguês da loja, pede para seu filho esperar na poltrona do corredor e metralha:
- Olha aqui, você está pensando o quê, heim? Já lhe disse mil vezes que odeio quando você dá os seus pitis sem necessidade!
- Mas, amoreco, eu achei que aquele sujeito...
- O quê! Adolfo Almeida Bastos (quando o nome é proferido por inteiro...), eu não acredito que você ousou desconfiar da sua esposa!
- É que aquele sujeito parecia...
- Parecia nada! Por hoje chega, vou embora!
O burguês, sentindo seu coração acelerar, acena com a cabeça, concordando.
- Então vamos, por hoje chega mesmo.
- Você não me entendeu, senhor Adolfo. Eu vou para casa sozinha! Aliás, para casa não, vou para casa da mamãe ver se essa raiva de você passa! Você leva o Quinho! Mais tarde nos falamos. Que coisa!
O burguês concorda, mesmo não querendo. Tira duas notas de cem reais do bolso e as oferece para o pagamento do táxi. Depois afaga os cabelos espetados de seu filho, chamando-o para irem ao estacionamento. Enquanto os dois desaparecem pelos corredores do shopping (novinho em folha), Alice espera em frente a loja de sapatos. Dez minutos depois ela se vira, anda alguns metros e entra na livraria. No corredor destinado aos quadrinhos o sujeito, que ainda folheava a edição de capa dura, observa a mulher se aproximar:
- Ele já foi?
Alice sorri. (Pequena anedota destinada a Nelson Rodrigues, o maior de todos os burgueses).

Ode ao burguês - capítulo 6

(Continuando...) Quase no final da ingestão do seu temaki, o burguês (mais desconfiado do que nunca) observava o sujeito puxar conversa com seu filho. Ele estava interessado em comprar um vídeo game e, percebendo o enorme interesse da criança no assunto, partiu para a arguição: você conhece o Xbox? É melhor do que o Play4? Sim, não, é... As palavras desfilavam e o burguês, agora notando que sua esposa prestava muita atenção na conversa de ambos sobre games, ficara mais irritado. “O que esse camarada quer?” “Acho que é um sequestrador, não um pedófilo sequestrador, é isso”. Decidido a defender a sua honra e a sua família daquele ser repulsivo (afinal, quem é o louco que almoça sozinho em um shopping?), o burguês abocanha o último pedaço da iguaria e profere solenemente: “Querida, filhão, vamos embora! Temos muitos presentes a embrulhar!” Em seguida se levanta tão rápido que sua bandeja colorida, cuja ponta estava firmemente acomodada nas dobras de sua barriga, de repente salta! O resto de molho de soja que sobrara da refeição voa, percorre uma quase perfeita parábola e aterrissa cinematograficamente na camisa do burguês, espalhando-se e acomodando-se em suas fibras de algodão. Atônito, ele solta um grunhido fino (feito porco na hora do abate) e, imediatamente, corre para o banheiro. Seu filho sorri pelos cantos da boca e volta ao iphone. Sua esposa, com um semblante quase tosco, desculpa-se, toda sem graça, com o sujeito. Este, vestindo uma camiseta preta, quase não sentiu o efeito do molho. Levanta-se, confere os respingos em seu jeans e se dá por satisfeito. “Não se preocupe, não sujou muito.” A esposa sorri rapidamente e pede para seu filho ir atrás do pai no banheiro, ordem que é cumprida muito a contragosto. Diante do espelho o burguês (que nunca se viu realmente) avalia o estrago: “230,00 reais por uma camisa polo e agora, lixo. Não acredito!” Em meio a suas reflexões é despertado pela chegada de seu filho: “Pai, a mamãe quer saber se você está bem?” O burguês olha para o filho, pensa um pouco e responde: “Você deixou sua mãe sozinha lá, com aquele sujeito?”. O filho balança a cabeça, sem retirar o olhar do iphone. “Marcos Eduardo, desligue esse jogo e volte para lá”. O filho obedece. Cinco minutos depois, enquanto o burguês tenta ajeitar os seus cabelos (o gel estava ressecando), Marcos Eduardo retorna: “Pai, a mamãe não está lá.” O burguês, agora com um certo frio na barriga, sai do banheiro, caminha até a mesa de quatro lugares e, já com vertigens, constata: “caramba, cadê minha esposa?” (continua...)

Ode ao burguês - capítulo 5

O burguês, satisfeito com as conquistas de mais um dia de "caça as ofertas" no shopping recém inaugurado (novinho em folha), segura pacientemente sua bandeja colorida, recheada com sushi, enquanto espera uma mesa vagar na praça de alimentação. Seu filho explora seu novo iphone, o que o preocupa (afinal acabara de comprá-lo, mas enfim...) e sua esposa mantém um olhar fixo, meio esperançoso, meio raivoso, em direção a uma mesa de quatro lugares ocupada por apenas um sujeito. Em sua mente desfilam as mais variadas formas de xingamentos, afinal o que aquela pessoas está fazendo ali? Sozinha em uma mesa familiar? Que absurdo! O sujeito percebe o olhar e a situação. Dócil, convida o trio de burgueses para sentarem-se à mesa, afinal, são três lugares vagos. O burguês recebe a proposta com desconfiança (e se for um bandido querendo nos atacar desprevenidos, como nas histórias do Datena?). Sua esposa, antes de aceitar formalmente o convite, deposita as sacolas na cadeira em frente ao sujeito. Depois, refletindo sobre a disposição dos lugares, agradece com um ar sério, retira as sacolas e pede para seu filho sentar-se ali. O menino, sem retirar os olhos do novo iphone obedece. Ela então se senta ao lado do filho enquanto o burguês, muito contrariado, se senta ao lado do sujeito, que volta a degustar calmamente sua batata recheada. A família começa a comer suas iguarias japonesas, de baixa caloria, conforme recomendações de seus respectivos consultores de saúde (continua...)

Ode ao burguês - capítulo 4

O poodle (que imaginava ser o burguês) parou de latir. Desvencilhando-se dos filhos do burguês (que acreditavam serem mesmo filhos dele) correu para perto de seu dono. A esposa de cabelos lisos e coloridos artificialmente (que as vezes se sentia como uma poodle) soltou o ar dos pulmões aliviada. Poderia, agora, assistir ao programa de comédia produzido por burgueses “descolados”. O burguês, na frente da tela de seu ultrabook, sentia sono (condição inata). Com um sorriso forçado (tautologia), afaga os pelos de seu cão, relembrando a textura de seu “ursinho de pelúcia” da infância (sempre coisificando os seres). Ainda sem decidir o formato de seu blog (é mais fácil mandar do que fazer), o burguês navega entre sites de compras. A lembrança de sua infância lhe traz, de repente, uma ideia: - “Isso, vou construir minha árvore genealógica!”. Munido de fotos antigas e dos documentos oficiais da família, descobre que seu tataravô foi o capataz (capitão do mato) de uma fazenda e que seu bisavô foi o chefe de um engenho no interior. Lembrava que seu avô foi o gerente de um banco paulista e que seu pai havia seguido a mesma carreira. Revisitando-os e comparando seus antecessores ao seu momento (ele era o diretor de uma multinacional), obteve uma certeza: - “É, os Souza Bastos nasceram para comandar”. Um minuto depois seu celular vibra. Seu superior o convocava para uma reunião urgente, como todas as reuniões urgentes (fora de seu horário de trabalho) naquele mês. A contragosto, o burguês volta a colocar os sapatos enquanto reflete: “Ah, o preço que se paga pelo sucesso...”  Na sala, sua mulher, ao perceber o início do mesmo ritual de sempre, sente-se ainda mais aliviada: - “Enfim só!

Ode ao burguês - capítulo 3

O burguês em crise (medo dos alienígenas, dos zumbis e do desabastecimento, incluindo de água) começa a construir seu blog. Seus dedos gordos passeiam pelo teclado do ultrabook (última aquisição de seu passeio semanal no shopping). Em pesquisa rápida pelo grande oráculo (chamado pelos outros de Google), se depara com uma "sampa" da década de vinte e com a sua paulicéia desvairada. - "Mário de Andrade? Acho que já ouvi falar deste nome nos meus tempos de colégio..." Resolve, então, ler a poesia que lhe parece (pelo título, sempre pelo título) uma homenagem aos homens de bem como ele. Lê, relê, não entende. - "Ódio vermelho? Ódio fecundo? Puxa, que esquisito..." O burguês, diante da adversidade cognitiva, deixa "sampa 20" e volta ao seu bom e velho site de compras online...

Ode ao Burguês (Mário de Andrade)

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, 
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

Ode ao burguês - capítulo 2

O burguês quase acéfalo (questão evidente) desiste de seu interlúdio com o espelho (pois imagens são melhores em HD). De volta ao caminho do seu banheiro, sentindo o chão forrado pelo laminado que imita madeira (quase perfeito) intenta, em sua zona de desconforto, uma ideia: Uau, vou compartilhar minhas angústias em um blog! (pois contatos virtuais não cheiram e não soltam as tiras). Agora sentado em seu devido trono, produzindo parte de sua essência, apenas uma dúvida o atormenta. Está indeciso, para ilustrar o seu espaço virtual, entre a imagem de jesus estilizada em um grafite e a frase do grande filósofo contemporâneo: "Amo muito tudo isso!"...

Ode ao burguês! (versão contemporânea) capítulo 1

O burguês com sérios problemas cognitivos (uma questão intrínseca), olha para o seu carro financiado, para o seu apartamento financiado, para a sua esposa de cabelos alisados e coloridos artificialmente. Seus olhos giram pela sala, passam pela TV novinha, pela varanda com espaço gourmet e por seus dois filhos de cabelos espetados, que brincam com um pequeno poodle que late sem parar. Sem os seus sapatos apertados, sente os fios de seu espetacular tapete persa. Aos cinquenta anos, com sobrepeso e pressão alta, o burguês (na verdade capitão do mato) não entende mais nada. Lentamente se levanta e caminha na direção de seu banheiro, a fim de produzir algo mais palpável do que seus pensamentos. No caminho encontra um espelho, e tomado por uma esperança juvenil, encara-o e pergunta: espelho, qual é o problema do mundo? O espelho não responde, apenas reflete.