Adormecido em seu
sofá (ainda com os pés em seu tapete estupendamente persa), o burguês não notou
quando Alice entrou no apartamento, seguido de seu filho caçula. Enquanto ela
preparava o jantar da família (ainda pensando no sujeito de camiseta preta),
seus filhos resolveram ligar o vídeo game de última geração que estava
conectado a TV da sala. O jogo era baseado em um cenário de guerra e o som dos
tiros de metralhadoras, fuzis, revólveres e bazucas (aliás, como dizia o grande
Arnold, quanto mais pesado o armamento melhor!) começou a interferir nos sonhos
do burguês. A praia quase deserta onde ele se encontrara com sua vizinha loura
(e muito malhada) se desfez. Em segundos o burguês vivia, em seus devaneios,
outra situação: andando sozinho pelas ruas de um subúrbio aterrorizante
(afinal, periferia é lugar de bandido, pensava o burguês e quase todos os
burgueses que ocupavam os apartamentos de seu condomínio) envolto pela penumbra
da noite e pelo medo de ser assaltado, ele tentava chegar a um lugar seguro,
sem sucesso. Todas as esquinas que dobrava o recolocavam na mesma rua, escura,
cheia de becos, de onde, ao longe, ouvia muitos tiros sendo disparados. Seu
coração acelerou, sua respiração ficou pesada e, momentos antes de acordar de
seu pesadelo, o burguês teve tempo de encontrar, nesta rua anti-idílica, com
três marmanjos mal encarados, cheios de más intenções (pois periféricos são por
natureza perigosos, acreditava ele). Ao tentar correr percebeu que seus pés
estavam grudados no chão, presos ao asfalto. Enquanto as três figuras vinham ao
seu encontro, o burguês gritava desesperadamente: Socorro, socorro! Chamem a
ROTA, chamem a ROTA!!!! O primeiro meliante que o alcançou tinha, por incrível
que pareça, exatamente o rosto do raper Mano Brown, e, momentos antes de
descarregar sua arma no peito do burguês, olhou bem para os seus olhos e disse:
Aqui estou mais um dia, sobre o olhar
sanguinário do vigia... E de repente:
Bam, bam, bam!!!! Os filhos do burguês se assustaram com o grito do pai.
Alice correu para ver o que ocorrera. Ele, sentado no sofá, atônito e sem
fôlego, tentava falar o que tinha acontecido: Eu, eu, levei vários tiros em um
sonho! Argh, que sensação horrorosa! Sem dizer nada, Alice, balançando negativamente
a sua cabeça, voltou para a cozinha. Seus filhos, depois de ouvirem na íntegra
o conteúdo do pesadelo que seu pai vivera, voltaram a jogar vídeo game e o
burguês... bom, o burguês correu para o seu quarto na tentativa de se acalmar
embaixo de uma boa chuverada. Ensaboando-se e tentando relaxar, ainda sentia
suas pernas trêmulas. Enchendo os pulmões de ar, sentou no chão do box (como
fazia quando era criança) e abraçou suas pernas, enquanto pensava: “Nossa, até
quando seremos refém da violência? Será que nós, pais de família e cidadãos de
bem não merecemos um mundo seguro, livre desta laia de bandidos, homicidas e
estupradores? É, o Alberto (um colega de trabalho) tem razão. Nas próximas
eleições votarei no Bolsonaro”. Trinta minutos depois o burguês estava calmo.
Suas pernas não tremiam mais e seus dedos ágeis o ajudavam a pesquisar as
promoções no site de compras que ele adorava.
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