O burguês
aguardava Alice voltar da sorveteria "viajando" pelos sites de compra
da internet. Ao procurar na seção de CD´s e DVD´s antigos (seu smart-sobrinho o
alertara de como consumir clássicos está na moda), emergiu uma figura com um
nome que ele lembrava vagamente: Seleção das 20 mais de Geraldo Vandré.
Estranhando um pouco a foto de um rosto dentro de uma gota de orvalho, o
burguês enfim lembrou-se do cantor: "Ah, é aquele comunista safado, que
foi torturado pelas forças armadas. Nossa, ainda bem que eles nos salvaram
desta gente!" Olhando para a lista das músicas selecionadas do CD,
deparou-se com um nome curioso: Aroeira". Dedilhando rapidamente seu
ultrabook de penúltima geração (esses danadinhos sempre tem um lançamento na
semana seguinte...) encontrou em um site de música a letra da canção:
Vim de longe, vou
mais longe
Quem tem fé vai
me esperar
Escrevendo numa
conta
Pra junto a gente
cobrar
No dia que já vem
vindo
Que esse mundo
vai virar
Noite e dia vêm
de longe
Branco e preto a
trabalhar
E o dono senhor
de tudo
Sentado, mandando
dar.
E a gente fazendo
conta
Pro dia que vai
chegar
Marinheiro,
marinheiro
Quero ver você no
mar
Eu também sou marinheiro
Eu também sei
governar.
Madeira de dar em
doido
Vai descer até
quebrar
É a volta do cipó
de aroeira
No lombo de quem
mandou dar.
"Hãããã..., o
que é isso? Cipó, aroeira, escrevendo conta... aff... deve ser mais um filho da
puta que escreve coisas sem sentido e se acha artista... É por essas e outras
que prefiro Tom Jobim... Ah, a praia de Ipanema..." Entendendo, mas não
querendo entender a letra da canção, o burguês resolveu comprar a obra completa
do maestro Tom Jobim. Desta forma poderia levar alguma informação de requinte
para as conversas de final de expediente com seus chefes e além de tudo,
gabar-se de sua erudição com seus comandados. Enquanto concluía a compra, seus
pensamentos, embalados pela milésima escuta da tal Garota de Ipanema (mais
burguês do que isso, só o hino americano...) compunham imagens espetaculares:
Sua vizinha, que vestia um pequeníssimo biquíni (uma falsa loira bem malhada),
corria em sua direção (em uma praia qualquer de Angra dos Reis), clamando por
seus lábios... "vem, vem, vem!!!!"
O barulho da
porta da sala se abrindo o fez voltar para a realidade:
- É você
benzinho?
- Não pai, não é
a mamãe... sou eu.
A imagem de seu
primogênito entrando cabisbaixo (prestava atenção em seu celular) interrompeu,
mas não cessou seus devaneios: "Ah, se ela me desse bola..."
No apartamento do
lado a vizinha assistia TV (3D, por sinal) em cima de uma esteira ergométrica.
Seu namorado pergunta sobre o senhor boa praça que puxara papo com ele no
elevador sobre o tempo (o burguês tentava ser socialmente correto):
- Ah, o nosso
vizinho de andar?
- É ele mesmo.
Parece ser gente boa.
- Gente boa, um
perfeito babaca! Não tira os olhos dos meus peitos.
- Sério? E nunca
deu umas entradinhas não... rsrs...
- Nunca, só olha
e tenta disfarçar...
- Que otário!
- Como eu disse,
um perfeito idiota!
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